Pode até soar repetitivo, eu sei. Especialmente para quem frequenta certos espaços e está familiarizado com algumas formas discursivas. Mas eu prometo que este não é um gesto postiço. O recorte que proponho para a mostra Cinema Brasileiro Anos 2010: 10 Olhares está fundado numa prática curatorial comprometida com a criação de condições para a vida. E não há vida sem a matéria corpórea, especialmente a preta[i], à qual tenho dedicado a maior porção do meu trabalho.
Assim, o que vocês encontrarão nesta constelação fílmica são quatro curtas e quatro longas onde o corpo é presença. E presença é vida, pois o cinema contribui para que as histórias dos indivíduos existam mesmo quando foram exterminados. Além disso, as obras aqui reunidas também nos ajudam a perceber linhas de força, tendências, convenções e zeitgeists refletidos ou capturados por outros filmes que integram outros recortes curatoriais desta mostra ou que por ventura não estão aqui exibidos.
A primeira forma de presença do corpo que este recorte aponta está na retomada física de espaços em que o colonizador patenteou como seu[ii]. O sarcasmo dilacerante do curta Morde & Assopra (2020) talvez seja a mais forte representação dessa forma de presença. Adentrando um casarão endinheirado onde antes seu avô esteve como empregado, o diretor-ator-performer-roteirista Stanley Albano mobiliza signos do que poderíamos considerar uma vida de patrão. Com um importante adendo: ao entrar na Casa Grande, ele a nomeia como tal. Corporificando um flâneur-furacão, o diretor-ator vai da redução de danos à reparação histórica.
No Brasil onde nascemos, crescemos e fomos socializados, temos enorme dificuldades em falar sobre reparação histórica e caminhar para a construção de medidas nesse sentido. Em Morde & Assopra, o sarcasmo e uma pitada de deboche são como roupas que permitem um discurso entrar e se manter numa arena pública. Stanley não é o único criador negro a utilizar-se recentemente dessa estratégia. Quantos Eram Pra Tá? (2018), dirigido por Vinícius Silva, caminha assertivamente para que, ao chegarmos nos créditos finais, recebamos de peito aberto os versos de Rihanna entoando “Bitch Better Have My Money”[iii].
Se em Morde & Assopra essa toma é física, em Vamos Fazer um Brinde (2011) ela se dá de forma simbólica, passando por outras estradas. Relativamente “sanduichado” dentro da historiografia recente do cinema brasileiro, o longa de Sabrina Rosa e Cavi Borges “recoloniza” o território da alegria de viver, reprogramando o automatismo que atribui o território da tragédia como inerentemente preto ou a dor como competência da negrura[iv]. Pelo encantamento que causa, pelo fluxo textual e escolhas de dramaturgia, bem como pelo gesto de reunir personagens pretos que compartilham intensa intimidade para celebrar a vida como forma de superar as dores, Vamos Fazer um Brinde abriu na década passada um sentimento que amplamente marcaria o final do decênio por meio da obra de Glenda Nicácio e Ary Rosa, particularmente dos longas Café com Canela (2017) e Até o Fim (2020).
Uma segunda matriz de presença do corpo manifesta-se em algumas obras que refletem tanto a formação quanto a conformação do Brasil. No recorte aqui proposto, três filmes inteiramente diferentes entre si lidam de maneira mais direta com essa forma de presença. O primeiro é Pontes Sobre Abismos (2017). Obra transdisciplinar da artista Aline Motta[v], o curta enfrenta, com profunda inventividade formal, como o Brasil tal como o conhecemos se formou. Aline interessa-se particularmente por um aspecto dessa formação: a família e o(s) lugar(es) da miscigenação.
Aqui os corpos se materializam nas fotografias impressas em lençóis que tocam o Atlântico. Imagens que levam os forçadamente de cá para a costa de lá. Corpos que se tornam vivos também pelo texto escrito e narrado pela diretora, por certidões de nascimento que delimitam raça como categoria social, e por recortes de jornais que contam “o segredo”. No primeiro capítulo de Memórias da Plantação (2019), Grada Kilomba se volta ao retrato de uma mulher escravizada que tem boca invadida por uma Máscara de Flanders e o toma como oportunidade para falar sobre o que ela chama de “máscara do silenciamento”. Pontes Sobre Abismos, ao finalizar com um conto sobre como o leopardo ganhou suas pintas negras, Aline ousa falar de um “segredo” compartilhado que funda (muitas) famílias brasileiras.
Ao ser formado, esse país passa a ser conformado por relações que determinam as vidas que valem e as desimportantes. Os corpos aos quais a finitude precoce é dispensada para que outros sejam longevos. Nesse entroncamento habitam Enquadro (2016) e Baixo Centro (2018).
Um curta-metragem de Lincoln Péricles, Enquadro estabelece prontamente que o cinema não salva vidas. “Nenhum filme trará os que morreram de volta”. Combinado com o sentido do título – levar um esculacho da polícia –, é possível antecipar que a experiência do filme será sobre os corpos não-brancos e periféricos dilacerados pela violência policial. O curta está fincado na dissonância entre o que se mostra – vielas, ruas, praças, escadarias e prédios de um pedaço do Capão Redondo, bairro do extremo sul de São Paulo onde Lincoln nasceu e filma – e o que se ouve – três depoimentos de homens relatando a rotina tanto de trabalho quanto dos tapas e xingamentos da polícia.
“Eles só batem quando não tem ninguém vendo”, diz um dos entrevistados. E o filme nos oferece uma câmera que vaga pelo bairro como que desejando encontrar o espectro de tantos outros esculachados pela polícia. Ou espreitando para garantir que uma vida seja preservada. Ou simplesmente andando pelas mesmas ruas, subindo as mesmas escadas, mirando o mesmo campinho frequentados por aqueles que se foram. Ou... Enquadro me enche de muitos “ou” e de caminhos de interpretação. O filme está certo na afirmação sóbria de que “nenhum filme trará os que morreram de volta”[vi]. Contudo, não fosse a obra de Lincoln eu jamais saberia de Foguinho ou de Pedro.
Um segundo filme a habitar o entroncamento da finitude precoce é o longa-metragem Baixo Centro, dirigido por Ewerton Belico e Samuel Marotta. Somos apresentados a uma imagem de corpo-inadequação e a uma temporalidade no mínimo ambígua. Vemos o que é matéria: ruas, praça, ônibus, uma paisagem de prédios, pontes, postes de iluminação, esquinas, sirene da viatura policial. Mas algo da encenação no filme nos deixa num terreno onde o que tendemos a assumir como mundo dos vivos é, na verdade, rodeado por mortos.
A cidade à qual somos apresentados em Baixo Centro é uma cidade em que pessoas perderam pessoas. O filme, assim, opera uma espécie de encontro entre duas instâncias discursivas. Na primeira, a cidade é esse terreno de imensa tensão em que ou se está perdido, enlouquecido ou desviando da morte. Na segunda, a cosmologia das religiões de matriz africana é trazida na figura do Egum, que é tanto a morte em si como o ancestral que se foi.
A terceira matriz de presença do corpo que o recorte aqui proposto investiga toma forma no documentário cartográfico, no registro do presente que se desenrola enquanto é filmado e no mirar a um passado que opera justiça.
Um Filme de Dança (2013) representa um hercúleo esforço de pesquisa conduzido pela documentarista, professora e coreógrafa Carmen Luz. Ultrapassando o mérito do registro para a posteridade ou de discussões sobre dança negra ou denominações variantes, o filme nos convida a escutar corpos negros falantes que tomam a dança como expressão de potência. O documentário de Carmen me pega porque me relembra que nós, os pretos, somos imparáveis, e que carregamos as memórias dos trânsitos atlânticos. Senão, como teríamos inventado tanto sem que nos eliminassem por inteiro da Terra Brasilis?
Essa vibração também toma a minha espectatorialidade em A Batalha do Passinho (2013), um filme sobre um passado que foi praticamente ontem, mas que ainda dá a ver um Brasil com sensíveis diferenças do país que temos em mão no momento da realização desta mostra. Registrando o fenômeno da dança do passinho, a articulação em rede dos dançarinos, as ferrenhas competições e como os movimentos de um chegam na dança do outro, o documentário dirigido por Emílio Domingos faz explodir na tela a potência dos corpos não-brancos e favelados.
Um Filme de Dança e A Batalha do Passinho são arquivos sobre as práticas criativas de corpos costumeiramente tornados ausentes justamente na construção de arquivos. Carmen filma aqueles quase nunca filmados, estabelece interlocução com as gerações mais jovens e garante que nos seja permitido vê-los. Já Emílio filma o agora, também garantindo, contudo, que nos seja permitido ver os corpos vulneráveis à necropolítica – caso de Gualter, o Gambá.
Em ambos os filmes nos é oferecida a possibilidade de memória. Mas e quando a memória foi ingrata aos nossos corpos, onde habitamos? É isso que me faz pensar Tudo que É Apertado Rasga. Autorizando-se a pegar emprestado o que o cinema de montagem e o cinema de arquivo legou como estratégias, o diretor Fabio Rodrigues Filho devolve a atrizes e atores negros veteranos ou já falecidos a dignidade que o cinema brasileiro muitas vezes tirou desses profissionais.
Fabio mobiliza uma variedade de recursos. O zoom in destaca aqueles que realmente importam, mesmo que tidos como desimportantes numa trama. A repetição de depoimentos e causos traz o desconforto de ver Zezé Motta sendo convocada a relatar a dor da injúria inúmeras vezes. A sobreposição de uma voz over aproxima pessoas de diferentes tempos. A revisão das entrevistas de Grande Otelo faz com que finalmente possamos escutar quem ele realmente foi. E no centro desses procedimentos está o corte, ferramenta que interrompe o curso de algo, mas também junta materiais distantes.
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[i] Há três anos, quando concebi o projeto curatorial Cinema Negro: Capítulos de uma história fragmentada, a mais ampla mostra a investigar a autoria negra no cinema brasileiro, particularmente no formato curta-metragem, dividi os 25 curtas em cinco programas: Família, Genocídio, Raízes, Diáspora e Corpo. Não foi à toa a decisão de encerrar a programação com um conjunto de filmes que tomava o corpo preto como objeto de interesse.
[ii] Ou como canta Djonga em Corra: “Eu disse ‘ó como cê chega na minha terra’/ ele responde ‘quem disse que a terra é sua?’”.
[iii] É deliciosa a coincidência de que a mesma canção tenha sido utilizada em duas obras que abordam reparação aos povos negros escravizados. Cito também um esquete do episódio 3 da série Random Acts of Flyness (2018). Nele, o personagem interpretado por Terence Nance apresenta, à maneira consolidada por Steve Jobs nos lançamentos de produtos da Apple, uma invenção revolucionária: o app “Bitch Better Have My Money”, que ajuda a conectar brancos que desfrutam do privilégio de um mundo moderno erigido sobre a mercantilização do corpo negro com os descendentes dos vitimizados. A íntegra dessa esquete pode ser assistida em: www.hbo.com/video/random-acts-of-flyness/seasons/season-1/episodes/episode-3/videos/clip-bbhmm
[iv] Na canção Black is the Color of My True Love’s Hair (1959), Nina Simone já havia oferecido uma disrupção a esse circuito. Ao alargar a sílaba “Bla” de “Black” e finalizar a frase com “is the color” num timbre sombrio, Simone antecipa a expectativa que completaria “Preto é a cor... da tristeza” e a subverte ao dizer que preto é a cor do cabelo do meu verdadeiro amor.
[v] Pontes Sobre Abismos surge como um videoinstalação em três canais. Em 2018 eu proponho, através do projeto curatorial Cinema Negro: Capítulos de uma história fragmentada, uma possível vida cinematográfica para essa obra até então restrita a museus. Também em 2018 uma das fotografias resultantes da investigação da série, a Pontes Sobre Abismos #3, integra, a partir das contribuições do curador Hélio Menezes, a exposição Histórias Afro-atlânticas. Desde então, o trabalho de Aline tem tido maior capilaridade nos espaços de cinema, haja vista a retrospectiva Panorama: Aline Motta, realizada pelo III Festival Griot, em dezembro de 2020.
[vi] Frase que poderia com muita facilidade ilustrar outro curta marcante da década: Na Missão com Kadu (2016), dirigido por Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de Brito.